24/03/09

Jardins do Paraiso XIII ( Dr. Strangely Strange )


Durante largos anos vítima dos seguidores do culto de Jack Sparrow, Long John Silver ou de corsários menos mediáticos , mas todos com veleiros parqueados em paraísos das Caraíbas ou noutros igualmente aprazíveis locais do planeta, “Kip of the serenes” conhece finalmente uma reedição competente e legal.

Datado de 1969, constituiu o primeiro álbum de um trio de luminárias – Dr. Strangely Strange - oriundo de Dublin. Tim Booth, Tim Goulding e Ivan Pawle residiam numa comuna artística chamada The Orphanage. Local boémio e poiso regular de músicos irlandeses e estrelas em construção. Os Thin Lizzy por exemplo, homenagearam a casa no seu segundo álbum “Shades of a blue Orphanage”. Gary Moore aprendeu por lá muitos acordes de guitarra.



Um ano antes, em 1968, depois de ter partilhado um palco de Dublin com o trio, Robin Williamson recomendou a banda ao produtor Joe Boyd. Meses mais tarde Dr. Strangely Strange ( agora incorporando a cantora Caroline ‘Linus’ Greville ) encontrava-se em Londres para gravar o primeiro álbum.

Kip of the serenes” só não será o primeiro disco de “acid-folk” porque à data já a Incredible String Band tinha no activo um par de excelentes trabalhos publicados. É todavia um dos primeiros onde o horizonte se alarga significativamente; do folk até ao psicadélico, com incursões no campo do erudito, conduzindo a música dos irlandeses até às margens do que se viria a chamar de progressivo.

Joe Boyd ( americano ), um produtor tão importante para o folk britânico como, digamos, John Cale ( galês ) foi para o rock americano, depois de ter trabalhado com Shirley Collins, Incredible String Band, Fairport Convention e Nick Drake, captou a verdadeira essência da música destes irlandeses, perpetuando em “Kip of the serenes” não apenas o universo criativo, a literatura, o espírito revolucionário/patriotismo mas, sobretudo um testemunho de época que enquadra e define o eterno imaginário irlandês.



A foto da capa ( da autoria de Anne Goulding, outra residente do Orphanage ) e o comic da contracapa ( de Tim Booth ) deixam perceber tudo o que se pode ouvir no disco.
“Strangely strange but oddly normal” , incluído em várias compilações da Island, é o manifesto musical da banda. “Dr. Dim and Dr. Strange”, “On the west Cork Hack” e “Ship of Fools” significam o “missing link” entre a raíz folk de “The hangman’s beautiful daughter” e o barroco de “The least we can do is wave to each other”, o que para os meus ouvidos são verdadeiras hossanas.

“Roy Rodgers” aborda simultaneamente caracteres como Jesse James, Lloyd George, Rupert Bear ou o vaqueiro Rodgers. O texto de James Joyce em “Strings in the earth and air” não surpreende face ao que já ficou para trás. “A tale of two Orphanages” significa exactamente isso, enquanto “Donnybrook Fair” é um espaço onde se cruzam unicórnios, caranguejos, tabuleiros de xadrez, golden apples, macacos chineses, saias em tons de arco-iris… , em suma, tudo o que uma genuína feira popular deve oferecer.


Quanto aos 4 temas adicionais, destaque particular para o magnífico “Mirror Mirror” numa versão mais dinâmica e focalizada do que a surgida em 2007 na compilação de inéditos “Halcyon days”.

Kip of the serenes” é um local onde o folk pastoral, o psicadélico e o barroco coabitam e se compaginam sem sobressaltos. Em 1969 acolhia um lugar belo, estranho, quase único. Quatro décadas depois permanece inalterável.