Ao longo de quatro décadas, Randy Newman deu corpo a três carreiras distintas, duas delas em simultâneo.
Nos anos 60 começou por ser um compositor de canções, assalariado da Metric Music, uma casa a que alguns cantores de renome (Cilla Black, Dusty Springfield, Harry Nilson, Scott Walker) recorriam em busca de potenciais hits.
Anos mais tarde, no inicio dos 70s, desiludido com algumas interpretações das canções que escrevia, decidiu começar a cantá-las, dando origem a uma das mais incontornáveis páginas da música americana.
Em 1981, com a banda sonora do filme de Milos Forman “Ragtime”, seguiu os passos dos tios ( Lionel, Alfred e Emil ) e deu o pontapé de saída na terceira carreira. Uma actividade que se prolonga até hoje e que já lhe proporcionou 15 nomeações para o Oscar e uma estatueta dourada por via da canção “If I didn’t have you” do filme “Monsters Inc”.
No fundo, não deixa de ser curioso o facto de Newman - depois de Dylan e a par de Tom Waits, talvez o mais lúcido, perspicaz e satírico cronista da sociedade americana -, ser hoje mais ouvido pelos nossos adolescentes ( sem que estes provavelmente se dêem conta ) por via das bandas sonoras que compõe, do que por todos aqueles que aprenderam a saborear as suas melodias e mordacidade em álbuns como “Sail away”, “Good old boys” ou “Little criminals”.
É verdade que quem não aparece esquece e Newman, nos últimos 20 anos, para além das referidas bandas sonoras, gravou apenas três discos de canções. Natural portanto o esquecimento. O novo “Harps and Angels” é contudo um convite irrecusável ao regresso.
O novo registo revela um compositor mais do que nunca mergulhado nas formas tradicionais da música americana ( blues, ragtime, jazz de New Orleans ), mas sempre com o cabaret berlinense por perto. Aliás, o burlesco musical de algumas das peças, casa perfeitamente com as letras e dissertações provocatórias sobre os tecidos urbano, moral e político. “Harps and angels” é uma notável visão das nossas sociedades através da objectiva de um Newman mais velho, é verdade, mas também por isso muito mais sábio.
O modo como os cidadãos dos Estados Unidos olham para o seu país, num dos melhores textos que Newman escreveu (“A few words in defense of our country”), a comercialização/apropriação das canções pelas marcas publicitárias (“A piece of the pie”), a política de educação ou a falta dela (“Korean parents”), a abordagem do amor “façon” Randy Newman (“Losing you”, “Only a girl”), a questão da emigração (“Laugh and be happy”), são algumas das preocupações que o compositor decidiu trazer a público, como fez questão de referir em entrevista recente “antes que o mandato de Bush termine”.
Por detrás da sátira, Newman foi quase sempre um artista auto-biográfico, mesmo quando o não parecia. Neste disco esse facto é ainda mais acentuado pela necessidade que o compositor sentiu em fazer-se ouvir, nove anos após “Bad love", o anterior opus de canções.
Está de volta o Randy Newman de “Good old boys” ou “Sail away”. Leitura social atenta, irónica, sempre crítica. Abrangente na forma de interpretar as diversas expressões da canção americana. Lúcido e coerente nas ideias, económico e minimalista nas palavras. Raymond Carver seria certamente um entusiasta.