“Hoje de manhã bateram à porta.
Saberia dizer quem era pela forma como bateu, e porque a ouvi a atravessar a
ponte.
Pisou a única tábua que faz barulho. Pisa-a sempre. Nunca percebi como. Tenho pensado muito sobre a razão pela qual pisa sempre a mesma tábua, como é que nunca lhe escapa, e agora está ali fora, a bater-me à porta. Fiz de conta que não ouvi porque não me apeteceu…, por fim parou de bater à porta e foi-se embora pela ponte e, é claro, pisou a mesma tábua: uma tábua comprida com os pregos desalinhados, construída há muitos anos e sem conserto possível, e depois desapareceu, e a tábua ficou em silêncio. Consigo atravessar a ponte centenas de vezes sem pisar aquela tábua .”
Pisou a única tábua que faz barulho. Pisa-a sempre. Nunca percebi como. Tenho pensado muito sobre a razão pela qual pisa sempre a mesma tábua, como é que nunca lhe escapa, e agora está ali fora, a bater-me à porta. Fiz de conta que não ouvi porque não me apeteceu…, por fim parou de bater à porta e foi-se embora pela ponte e, é claro, pisou a mesma tábua: uma tábua comprida com os pregos desalinhados, construída há muitos anos e sem conserto possível, e depois desapareceu, e a tábua ficou em silêncio. Consigo atravessar a ponte centenas de vezes sem pisar aquela tábua .”
O acto de abrir a caixa do
correio despoleta sensações díspares, ambivalentes, naturalmente resultado do
que encontramos lá dentro; anunciado ou não. Aguarda-se sempre o melhor, ainda que a prudência aconselhe uma gestão criteriosa das
expectativas.
Hoje foi um dia bom. Richard
Brautigan depositou “Em Açucar de Melancia”( datado de 1968 ) na minha caixa de
correio. É, creio, o segundo livro do autor a ser publicado por aqui, depois de
“Uma mulher sem sorte” em 2003.
Colaborador esporádico dos Mad
River, uma das bandas mais menosprezados da San Francisco dos 60s, Brautigan
enquanto autor, foi arrumado na prateleira da contracultura e, talvez por mera
comodidade, aparentado à geração “beat”.
E no entanto, a sua narrativa
visual e satírica, terá poucos pontos de intersecção com o frenesi de um
Kerouac, a truculência marginal de um Burroughs ou a iconoclastia militante de
Ginsberg. Porventura talvez que a sofisticada tranquilidade magrebina de Paul
Bowles ou a convicção espiritual de Gary Snyder
melhor se lhe colassem à pele.
Richard Brautigan decidiu
deixar-nos no dia 16 de Setembro de 1984. Legou-nos uma obra vasta que talvez
não fosse pior investigar mais a fundo, nestes tempos em que o obscurantismo cultural
se mascara de conhecimento, tecnológico.