Reconhecendo embora o enorme talento de Lou Reed, devo confessar que “o meu Velvet” foi e será sempre John Cale. Uma opinião evidentemente. Mas,
do que se trata aqui é realmente saber
se falamos de talento ou se falamos de génio. E não, não é uma mera questão semântica, existe de facto uma
diferença entre o talento e o génio. O primeiro é constante, previsível; o
segundo é absolutamente o oposto de ambos.
Comprei a minha cópia original de “Music for a new society”
numa FNAC de Paris, em 1982. Produziu em mim o mesmo efeito hipnótico que os
glaciares “Marble Index” e “Desert Shore” ( coincidência, ambos produzidos por Cale );
uma espécie de mimetismo que se prolongava muito para além do tempo que duravam
as canções/elegias que os integravam. Como todas as obras maiores “Music
for a new society” não deixa ninguém indiferente. É o caso típico do clássico
que, ou se ama, ou se detesta.
Há um par de anos, levei a capa do meu original a um “backstage”
para que, entre o encantado e o surpreendido, o “big man himself” a
autografasse. Desde então não mais
escutei o disco. Regressei agora, a propósito da reedição remasterizada do
álbum original, acompanhada de “M:Fans” a transformação/recriação
dos temas e a forma como Cale os olha hoje, 35 anos depois de terem sido
escritos e gravados pela primeira vez.
Produzido num período complicado da vida do autor, “Music
for a new society” é um disco denso e perturbador. A frase “It’s
a loving world to die in”, a encerrar essa extraordinária peça que é
“Sanctus” e a ironia do cinzento “Damn life” incorporar notas da “Ode of Joy”
de Beethoven, quase poderiam resumir toda a atmosfera do álbum. Algures em 1983 Cale confidenciou numa
entrevista que optou pelo título porque “The
record is so dark, you’ve got to have something optimistic”.
Distante, quer de
registos mais “amigáveis” como “Paris
1919” ou “Caribbean Sunset” ( aqui
a maior proximidade reside no melódico “Close watch” recuperado de “Helen of Troy” ) quer de
brutais incinerações como “Honi Soit” ou “Sabotage”, “Music
for a new society” está repleto de melodias envergonhadas que as
colagens e os “overdubs” tornam quase imperceptíveis.
Inesgotável, este é um daqueles discos cuja audição nunca se
pode afirmar completa. A cada nova investida existe sempre um detalhe, uma
nesga de criatividade, que se descobre e
surpreende. Tal como algumas das muitas
curiosidades que encerra: a guitarra de Alan Lanier ( Blue Oyster Cult ) em
“Changes made”; a adaptação de “If you were still around”, um poema publicado por Sam Shepard em “Motel Chronicles”, ou a colaboaração
de John Wonderling, muito provavelmente o autor do raríssimo “Daybreaks”
( 1973 ), um disco em cujo tema de abertura - “Long way home” - , são feitas elogiosas
referências a Lisboa e ao Estoril.
“Music for a new society” não é um disco para todas as horas nem
para todos os dias. Antes um disco para sempre, porque na vida existirão sempre
aqueles momentos de estranha cumplicidade, os quais nos conduzirão de novo até ele.
Nota: “M:Fans”, embora partindo das mesmas canções, é outra coisa
muito diferente. Quem sabe, talvez um dia me sinta suficientemente confortável para sobre ele dissertar.